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Influência da respiração oral no desenvolvimento geral da criança
Ana Catarina Silva, Terapeuta da Fala no Espaço Crescer • out. 31, 2023

Qual é a influência da respiração oral no desenvolvimento geral da criança?
A
respiração é uma função inata, vital e involuntária, cujo propósito é a troca gasosa, de forma a manter o equilíbrio entre a quantidade de oxigénio e de dióxido de carbono no sangue14. Esta é uma das funções do sistema estomatognático que tem mais impacto no equilíbrio e na harmonia do complexo craniofacial, permitindo um correto funcionamento de todas as funções associadas (sucção, deglutição, mastigação e fala) e um desenvolvimento das estruturas oro-faciais sem alterações13.


Funcionamento fisiológico da respiração

A respiração é dividida em duas fases: inspiratória e expiratória. A inspiração ocorre através da contração do diafragma e dos músculos intercostais, expandido a caixa torácica para diminuir a pressão dentro dos pulmões e promover a entrada de ar3. A expiração ocorre através do relaxamento do diafragma e dos músculos intercostais, contraindo a caixa torácica para aumentar a pressão dentro dos pulmões e promover a saída de ar3.

O ar pode entrar durante a fase inspiratória da respiração através de três modos diferentes: nasal, oral ou misto3. A forma fisiológica do fluxo inspiratório deve realizar-se através do fluxo inspiratório nasal, sendo crucial que haja integridade anatómica e funcional das vias aéreas para que este ocorra8. O ar inspirado que passa pelas narinas é aquecido e humedecido através do contato com a mucosa, filtrado pelos cílios de forma a remover as impurezas em suspensão e deslocado até aos pulmões para ser realizada a troca gasosa em termos celulares4,7,12.


O que é que pode levar a uma alteração do modo respiratório?

Perante a impossibilidade de respirar pelo nariz, o corpo assume a alternativa de respirar pela boca. Esta mudança pode ocorrer por causas obstrutivas mecânicas (quando há um bloqueio mecânico da passagem do ar nas vias aéreas) ou por causas não obstrutivas (resultante de questões funcionais)13.


Em termos das causas obstrutivas destacam-se: 

  • Hipertrofia de adenoides – esta é uma das causas mais comuns da obstrução nasal, sendo muito frequente em crianças com idades entre os 18 meses e os 5 anos5. Os adenoides estão presentes em todas as crianças desde o nascimento e atingem o seu pico de crescimento entre os 4 e 5 anos, posteriormente sofrem um processo de atrofia até aos 10 anos. Em algumas crianças, os adenoides podem aumentar de tamanho e obstruir de forma total ou parcial as vias aéreas superiores, desencadeando (dependendo da duração do período de obstrução) o modo respiratório oral13.

 

  • Hipertrofia das amígdalas – à semelhança dos adenoides, é comum que as amígdalas estejam aumentadas até aos 5 anos. No entanto, se não houver a sua diminuição de forma natural, poderá levar a um modo respiratório oral. Dependendo do nível de obstrução poderá, inclusive, resultar no quadro de apneia obstrutiva do sono13.

 

  • Hipertrofia dos cornetos nasais – o aumento destas estruturas pode ocorrer por várias razões, tais como inflamação da mucosa nasal (ex.: rinite ou sinusite) ou por alterações da estrutura nasal (ex.: desvio do septo)1.

 

  • Inflamação da mucosa nasal – destaca-se a rinite alérgica, pois segundo a literatura, é uma das causas mais frequentes da implementação e manutenção do modo respiratório oral crónico. Este processo inflamatório resulta na obstrução nasal uni ou bilateral, com obstrução intermitente ou permanente que decorre da hipertrofia dos cornetos nasais inferiores, médios ou superiores, tendo grande impacto na qualidade de vida da criança13

 

  • Desvio do septo nasal – esta também é uma causa frequente e pode surgir no período pré-natal, no parto ou durante o crescimento. Pode ser sintomático (com obstrução nasal) ou assintomático (sem obstrução nasal)13.

 

  • Malformações craniofaciais – em casos como fendas labiopalatinas ou palatinas, Síndrome de Down2 e outras síndromes, as alterações estruturais levam, geralmente, à instalação de um modo respiratório oral.

 

Nas causas não obstrutivas destacam-se:

  • Hábito de sucção prolongado – hábitos de sucção não-nutritiva prolongados (ex.: uso de chupeta, biberão ou sucção digital), dependendo da sua frequência, intensidade e duração, podem levar a um fraco desenvolvimento da mandíbula e a alterações na postura dos lábios e da língua, nas estruturas ósseas e dentárias, bem como na mobilidade orofacial. Estas alterações favorecem um modo respiratório oral11.

 

  • Alteração da força muscular da face – quando os músculos da cara estão flácidos (sem força), desencadeia-se uma postura baixa da mandíbula (boca aberta), originando um modo respiratório oral3.

Que impacto é que o modo respiratório oral pode ter na saúde em geral?

O modo respiratório oral não permite que seja realizada uma correta filtração, humidificação e aquecimento do ar inspirado, o que propicia a entrada de microrganismos na via aérea3. O fluxo inspiratório oral, para além de comprometer o funcionamento ventilatório e propiciar infeções, origina alterações estruturais e funcionais que comprometem a qualidade de vida e a saúde geral da criança.

 

Uma criança que apresenta um modo respiratório oral, em termos de estética facial, apresenta características que a identificam bastante bem. São crianças que apresentam uma face longa com aparente falta de força, olheiras, narinas estreitas, lábios entreabertos e gretados e boca aberta com a língua no soalho da cavidade oral10.

 

A par das questões estéticas, podem ser identificadas as seguintes alterações3,10:

  • Comportamentais – são provocadas essencialmente pela falta de descanso devido às dificuldades respiratórias. Crianças respiradoras orais são geralmente inquietas, ansiosas, irritáveis, agitadas e impacientes, estando sempre cansadas e sonolentas3. Estas características devem-se à baixa oxigenação cerebral decorrente do sono agitado e curto. Muitas vezes também surgem dificuldades no processo de aprendizagem, tendo repercussões no desempenho escolar3.

 

  • De alinhamento corporal – manifestam-se pela modificação do modo respiratório nasal para o oral, pois a criança, ao tentar garantir a função respiratória, efetua alterações no seu alinhamento postural, o que desencadeia uma desorganização das cadeias musculares, gerando compensações posturais que visam encontrar uma posição mais confortável e restabelecer o equilíbrio corporal3.

 

  • Nutricionais – surgem pela dificuldade na trituração dos alimentos. O facto de ser imprescindível ter a boca aberta para respirar faz com que não seja possível mastigar eficazmente, o que pode levar à associação da alimentação a sensações de sufoco, influenciando a quantidade e consistência dos alimentos selecionados para serem ingeridos pelo respirador oral3. A criança pode perder a vontade de comer, pois durante a mastigação e deglutição ocorre falta de ar, levando a perda de peso; ou por outro lado, pode comer muito rápido e com auxílio de líquidos para poder respirar, e ter preferência por alimentos mais pastosos face à facilidade e rapidez de mastigar/deglutir, levando a excesso de peso3.

E haverá impacto no desenvolvimento oromotor?

Para que ocorra uma respiração nasal e um correto desenvolvimento craniofacial é necessário que seja realizado o encerramento labial, sendo a língua uma estrutura crucial9

A base da língua (parte de trás) deve estar em contacto com o palato mole (zona posterior da boca junto à úvula), a porção média em contato com o palato duro (céu-da -boca) e a ponta da língua em contacto com a parte de trás dos dentes superiores centrais9. Quando não há o contacto da língua com um desses pontos, os músculos da face ficam flácidos (sem força), podendo levar a boca a abrir-se durante a inspiração.

 

O modo respiratório oral leva a alterações nas várias estruturas orofaciais, ao nível da sua morfologia e mobilidade6,9:

  • Face: falta de força generalizada;
  • Lábios: lábio inferior evertido ou interposto entre os dentes; lábio superior curto ou retraído; lábios secos e gretados, com alteração na coloração; pouca força muscular; 
  • Mandíbula: Hipotonia (pouca força), hipotrofia (subdesenvolvida) e/ou em hipofunção (desempenho inferior ao esperado) dos músculos elevadores da mandíbula (responsáveis pelo encerramento da cavidade oral), provocando uma abertura da boca durante a inspiração;
  • Cavidade oral: diminuição da pressão intra-oral; alteração sensorial nos recetores intra-orais, diminuindo a propriocepção da cavidade oral; 
  • Língua: alteração da postura em repouso (baixa) ou posicionamento entre as arcadas dentárias; pouca força muscular;
  • Arcada dentária: alterações da oclusão dentária;
  • Palato duro: profundo e estreito.

 

As alterações nas várias estruturas orofaciais provocam, consequentemente, modificações ao nível das funções6,9:

  • Mastigação não eficaz, que pode originar problemas digestivos, bem como aspiração pela incoordenação entre a respiração e a mastigação; 
  • Deglutição atípica e/ou adaptada; 
  • Fala imprecisa (ex.: sigmatismo anterior/lateral – comummente designado como “falar à sopinha de massa”); 
  • Voz com hipernasalidade ou hiponasalidade.


Que profissionais podem auxiliar no dignóstico e tratamento?

Perante a existência de alterações, a avaliação e a intervenção deve ser realizada por uma equipa multidisciplinar.

Inicialmente, deve ser realizada uma avaliação na especialidade de Otorrinolaringologia e/ou Alergologia para se identificar as causas da obstrução nasal, diagnosticar e estabelecer um tratamento clínico, medicamentoso e/ou cirúrgico3

 

É depois importante que o Médico Dentista de Ortopedia Funcional dos Maxilares avalie o crescimento e o desenvolvimento da maxila e da mandíbula, assim como das estruturas adjacentes, e que o Médico Dentista de Ortodontia avalie os dentes e o seu posicionamento nas suas bases ósseas (arcadas dentárias) 3

 

O Terapeuta da Fala irá avaliar as estruturas orofaciais (morfologia e mobilidade) e verificar o equilíbrio no desempenho das funções estomatognáticas (sucção, respiração, deglutição, mastigação e fala). Em intervenção, irá procurar adequar as posturas em repouso e os padrões funcionais das estruturas oro-faciais, de forma a assegurar um modo respiratório fisiológico3

 

Existem ainda outras especialidades que podem ser integradas neste tratamento, tais como a osteopatia, a fisioterapia respiratória, a nutrição, a psicologia, entre outras.

Bibliografia

 

1 Azevedo, A. F. de ., Martins, D. A., Cardoso, C. G., Moraes, I. F. C. de ., Michel, L. M. P., & Leite, L. H. R.. (2011). Cauterização química das conchas nasais inferiores com ácido tricloroacético. Arquivos Internacionais De Otorrinolaringologia, 15(4), 475–477. https://doi.org/10.1590/S1809-48722011000400011 

2Barata, L. F., & Branco, A.. (2010). Os distúrbios fonoarticulatórios na síndrome de Down e a intervenção precoce. Revista CEFAC, 12(1), 134–139. https://doi.org/10.1590/S1516-18462010000100018 

3Burzlaff, J. B. (2021). Odontologia miofuncional: o caminho da integralidade (1a edição). Porto Alegre: Conto

4Lima, A., Albuquerque, R., Cunha, D., Lima, C., Lima, S., & Silva, H. (2021). Relação do processamento sensorial e sistema estomatognático de crianças respiradoras orais. CoDAS, 34(2). https://doi.org/10.1590/2317-1782/20212020251 

5Leboulanger, N. (2016). Nasal obstruction in children. European Annals Of Otorhinolaryngology. Head And Neck Diseases, 133(3), 183-186. http://dx.doi.org/10.1016/j.anorl.2015.09.011 

6Marson, A., Tessitore, A., Sakano, E., & Nemr, K. (2012). Efetividade da fonoterapia e proposta de intervenção breve em respiradores orais. CEFAC, 14(6), 1153–1166. https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S1516-18462012005000054 

7Martinelli, R. L. de C., Fornaro, É. F., Oliveira, C. J. M., Ferreira, L. M. D. B., & Rehder, M. I. B. C. (2011). Correlações entre alterações de fala, respiração oral, dentição e oclusão. Revista CEFAC, 13(1), 17–26. https://doi.org/10.1590/S1516-18462010005000127 

8Menezes, V. A., Tavares, R. L. O., & Granville-Garcia, A. F. (2016). Síndrome da respiração oral: alterações clínicas e comportamentais. Arquivos Em Odontologia, 45(3).

9Monte, C. D. (2004) Síndrome da respiração bucal em adolescentes: estudo série de casos. Dissertação (Mestrado em Saúde Materno Infantil) - Instituto Materno-Infantil de Pernambuco

10Morais-Almeida, M., Wandalsen, G. F., & Solé, D. (2019). Growth and mouth breathers. Jornal de pediatria, 95 (1), 66–71. https://doi.org/10.1016/j.jped.2018.11.005 

11Pacheco, A. B., Silva, A. M. T., Mezzomo, C. L., Berwig, L. C., & Neu, A. P.. (2012). Relação da respiração oral e hábitos de sucção não-nutritiva com alterações do sistema estomatognático. Revista CEFAC, 14(2), 281–289. https://doi.org/10.1590/S1516-18462011005000124

12Pereira, Oliveira, F., & Cardoso, M. (2017). Associação entre hábitos orais deletérios e as estruturas e funções do sistema estomatognático: percepção dos responsáveis. CoDAS, 29(3). https://doi.org/10.1590/2317-1782/20172015301

13Pereira, T., Furlan, R., & Motta, A. (2019). Relação entre a etiologia da respiração oral e a pressão máxima da língua. CoDAS, 31(2). https://doi.org/https://doi.org/10.1590/2317-1782/20182018099 

14Sociedade Portuguesa de Terapia da Fala (2020). Dicionário Terminológico de Terapia da Fala(1ª edição). Lisboa: Papa-Letras

Exemplos de pesquisa: #psicologia, #terapiadafala, ansiedade, voz
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