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Implicações das Alterações do Processamento Sensorial na Comunicação de Crianças com Perturbação do Espetro do Autismo?
Patrícia Primo, Terapeuta da Fala no Espaço Crescer • 17 de abril de 2024

De acordo com o Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais 5ª Edição (DSM-5), a Perturbação do Espetro do Autismo (PEA) é uma alteração do neurodesenvolvimento, caracterizada por défices na interação social e capacidade comunicacional, pela ocorrência de comportamentos repetitivos e estereotipados e pela presença de interesses restritos (Khaledi et al., 2022; Mohammed, 2023; Posar & Visconti, 2017).

 

O ser humano interage com o meio envolvente desde o seu nascimento, através de uma rede complexa de recetores que enviam constantemente informações ao sistema nervoso central que, consequentemente, geram uma determinada reação (Vives-Vilarroig et al., 2022). 

Estas informações são captadas através dos diferentes sentidos, uma vez que são estes que moldam as diferentes sensações e as transmitem, possibilitando ao ser humano a compreensão do que o rodeia e a formulação de diferentes conceções (Silva, 2014). 

 

Vários estudos têm evidenciado que crianças com PEA percecionam os estímulos ambientais de diferente forma, presenciando dificuldades na adequada resposta ao meio ambiente (Silva, 2014).

O que é o Processamento Sensorial?

O Processamento Sensorial é caracterizado pela forma como o sistema nervoso central e periférico organiza e gere as informações sensoriais recebidas através dos diferentes sentidos, nomeadamente: visual, auditivo, olfativo, gustativo, tátil, propriocetivo e vestibular (Barimo, 2019; Mohammed, 2023; Silva, 2014). 

 

De que forma é que uma Alteração do Processamento Sensorial pode afetar o desenvolvimento da criança?

Uma Alteração do Processamento Sensorial (APS) é caracterizada como uma disfunção neurológica que interfere com a receçãomodulaçãointegraçãodiscriminação e organização adequada dos estímulos sensoriais e respetivas respostas comportamentais fornecidas (Mohammed, 2023).

 

Esta alteração pode condicionar o comportamento e desempenho em atividades de vida diária, uma vez que estas crianças apresentam dificuldades em regular a intensidade da resposta aos estímulos sensoriais (Silva, 2014).

 

Nos últimos anos, vários estudos têm demonstrado que existe uma prevalência significativamente elevada (entre 75-95%) de crianças com APS na PEA que além de serem evidentes na infância podem persistir na idade adulta (Silva, 2014; Mohammed, 2023). 

Cerca de 95% dos cuidadores de crianças com PEA referem a ocorrência de comportamentos sensoriais atípicos, nomeadamente: estranheza ou fuga a determinados sons ou texturas; ato frequente de cheirar objetos incomuns; procura de experiências com luzes ou movimento; indiferença à dor (Thye et al., 2017).

 

As crianças com PEA podem apresentar alterações nos sentidos que originam comportamentos sensoriais inadequados, destacando-se os seguintes sinais de alerta (Posar & Visconti, 2017; Silva, 2014):


Visão

  • Atração por fontes de luz; 
  • Foco visual em objetos com movimentos giratórios (p.e.: movimento da roupa dentro da máquina de lavar; rodas; hélices);
  • Dificuldade no reconhecimento de diferentes expressões faciais;
  • Evitamento do olhar do interlocutor;
  • Recusa de determinados alimentos, atendendo às suas cores.

 

Olfato

  • Cheiro obsessivo de objetos;
  • Recusa de determinados alimentos, devido ao seu odor.

 

Audição

  • Intolerância a determinados sons, que pode ter diferentes graus de tolerância;
  • Produção de sons repetitivos;
  • Dificuldade em reagir ao próprio nome.

 

Gustativo

  • Exploração oral de objetos;
  • Recusa e/ou seletividade alimentar, devido às diferentes texturas.

 

Tátil

  • Elevada tolerância à dor;
  • Dificuldade em distinguir a sensação de calor ou frio;
  • Necessidade de realizar comportamentos autoagressivos;
  • Dificuldade em manter contacto físico;
  • Necessidade de tocar em determinados brinquedos, superfícies ou texturas.

 

Propriocetivo

  • Falta de coordenação dos movimentos corporais;
  • Procura constante de apoio corporal;
  • Rejeição de determinados estímulos com muita pressão (p.e.: abraços e/ou roupa justa).

 

Vestibular

  • Balanço constante do corpo para manter um bom nível de funcionamento;
  • Equilíbrio inadequado, suportando uma grande quantidade de movimentos antes de se sentir tonto ou intolerância ao movimento.


De que forma as APS, em crianças com PEA, afetam as suas capacidades comunicativas?

Vários estudos têm demonstrado que as APS podem impactar negativamente a gravidade dos sintomas da PEA e consequentemente, a aquisição de determinadas capacidades comunicativas (Khaledi et al., 2022). 

As capacidades de linguagem em crianças com PEA podem variar bastante, uma vez que existem crianças que apresentam dificuldades acentuadas no desenvolvimento da linguagem, sendo que, na grande maioria dos casos, o domínio da pragmática, que diz respeito à forma como a criança utiliza a linguagem em diferentes contextos e situações, encontra-se comprometido, não melhorando em 25% das crianças com PEA (Khaledi et al., 2022).

 

Uma vez que o processamento sensorial influência o comportamento humano, grande parte das alterações apresentadas por crianças com PEA na comunicação e interação social são de natureza sensorial (Silva, 2014). As dificuldades em gerir e interpretar as informações sensoriais nas crianças com PEA podem criar obstáculos no desempenho de atividades comuns do dia-a-dia, como brincar, comer, tomar banho, lavar os dentes, vestir-se, entre outras (Silva, 2014).

 

É através das capacidades sensoriais desenvolvidas que as crianças conseguem percecionar as tentativas de interação dos interlocutores, evidenciando o seu papel e do “outro” no processo de comunicação (Mello, 2022). 

Por sua vez, é através da comunicação que a criança desenvolve as mais variadas competências, uma vez que lhe permite percecionar o ambiente que a rodeia e desta forma, manter uma forma de estar adequada, face às situações do dia-a-dia que vão surgindo (Mello, 2022).

 

Uma vez que a capacidade de comunicar é imprescindível para que a criança participe funcionalmente no ambiente que a rodeia e possua um papel social, quando esta é comprometida podem existir outras etapas do desenvolvimento intelectual e emocional que também são afetadas (Mello, 2022).

 

O comprometimento na capacidade de comunicação, pode provocar uma variedade de dificuldades, nomeadamente, na:

As crianças com APS podem apresentar também dificuldades em determinadas etapas do desenvolvimento e nas aquisições académicas, devido às seguintes características:

De que forma podem atuar os Terapeutas da Fala nas APS em crianças com PEA?

Ao intervir com crianças com PEA e APS, os Terapeutas da Fala (TF’s), devem considerar determinados fatores como o tamanho do espaço, a iluminação, as distrações visuais, o nível de ruído, os cheiros, entre outros aspetos, que possam condicionar o comportamento da criança, e consequentemente, o seu desempenho ao longo da sessão de intervenção (Piller & Barimo, 2019).

 

Uma meta-análise de 2009 (Ben-Sasson, 2009), realizada na Universidade de Haifa, demonstrou que 70-96% de crianças com PEA desenvolvem dificuldades relacionadas com a resposta aos estímulos sensoriais, tendo como principal consequência a diminuição na participação em atividades sociais, brincadeiras, desempenho académico, autocuidado, e sobretudo, um comprometimento na atenção conjunta, sendo este um pressuposto essencial para o desenvolvimento da comunicação e linguagem (Piller & Barimo, 2019).

 

O Terapeuta da Fala é o profissional responsável pela prevenção, avaliação, diagnóstico e intervenção de alterações da comunicação social, que ocorrem quando a criança apresenta dificuldades na utilização da comunicação verbal e não-verbal, sendo esta uma perturbação prevalente em crianças com o diagnóstico de PEA.

 

Paralelamente, o TF deve ser capaz de implementar estratégias durante o processo de intervenção, que atuem nas dificuldades sensoriais sentidas por estas crianças, de forma a maximizar o desenvolvimento das suas capacidades e melhorar a sua qualidade de vida, diminuindo a desregulação sensorial (ASHA, s.d.).

 

Que outras valências podem auxiliar nas APS em crianças com PEA?

A par da intervenção do Terapeuta da Fala, é fundamental a atuação do Terapeuta Ocupacional, uma vez que este profissional é responsável por avaliar o padrão sensorial da criança e atuar nas possíveis alterações, bem como implementar estratégias de base sensorial que devem ser transmitidas à equipa multidisciplinar.

 

Esta intervenção multidisciplinar tem como objetivo, beneficiar o sucesso da intervenção, uma vez que, atuando nas necessidades sensoriais da criança, melhoraremos a sua capacidade de atenção, concentração, autonomia e envolvimento nas atividades e tarefas propostas em diferentes ambientes (p.e.: casa, escola, atividades de lazer, atividades extracurriculares, terapia da fala, entre outras) (Piller & Barimo, 2019).


Bibliografia


  • Almeida, S. (2019). A importância do som no processamento sensorial em crianças com perturbação do espetro do autismo: um estudo de caso de exploração do ambiente da escola com sensores [Dissertação de mestrado, Instituto Politécnico de Viseu, Escola Superior de Educação de Viseu]
  • American Speech-Lanuguage-Hearing Association. (s.d.). Speech-Language Pathologists. https://www.asha.org/students/speech-language-pathologists/
  • Barimo, A. (2019). Strategies to calm and engage children with ASD. American Speech-Language-Hearing Association. https://leader.pubs.asha.org93.108.218.28
  • Khaledi, H., Aghaz, A., Mohammadi, A., Dadgar, H., & Meftahi, G. (2022). The relationship between communication skills, sensory difficulties, and anxiety in children with autism spectrum disorder. Official Journal of The Okasha Institute of Psychiatry, Ain Shams University.https://doi.org/10.1186/s43045-022-00236-7
  • Mello, G. (2022). A comunicação na Perturbação do Espetro do Autismo (PEA): descrição e análise de uma formação à distância [Dissertação de mestrado, Politécnico de Coimbra, Escola Superior de Educação]
  • Mohammed, N., Hafez, N., El-Gebaly, H., & Fahiem, R. (2023). Efficacy of the sensory integration therapy on language development in autism spectrum disorder children. Egyptian Journal of Ear, Nose, Throat and Allied Sciences. DOI: 10.21608/ejentas.2023.180257.1586
  • Posar, A., & Visconti, P. (2017). Sensory abnormalities in childrean with autism spectrum disorder. Jornal de Pediatria, 1-9. http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2017.08.008
  • Silva, E. (2014). Processamento Sensorial: Uma nova dimensão a incluir na Avaliação das crianças com perturbações do Espetro do Autismo [Dissertação de mestrado, Universidade do Minho, Instituto de Educação]. 
  • Thye, M., Bednarz, H., Herringshaw, A., Sartin, E., & Kana, R. (2018). The impact of atypical sensory processing on social impairments in autism spectrum disorder. Developmental Cognitive Neuroscience, 29(1), 151-167. http://creativecommons.org/licenses/BY/4.0/
  • Vives-Vilarroig, J., Ruiz-Bernardo, P., & García-Gómez, A. (2022). Sensory integration and its importance in learning for children with autism spectrum disorder. Brazilian Journal of Occupational Therapy, 30, e2988. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAR22662988
  • Sanz-Cervera, P., Pastor-Cerezuela, G., González-Sala, F., Tárraga-Mínguez, R., & Fernández-Andrés, M. (2017). Sensory Processing in Childrean with Autism Spectrum Disorder and/or Attention Deficit Hyperactivity Disorder in the Home and Classroom Contexts. Frontiers in Psychology, 8:1772, 1-12. DOI: 10.3389/fpsyg.2017.01772
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A Terapia da Fala, utilizando práticas baseadas na evidência científica, recorre ao funcionamento do cérebro como uma ferramenta de intervenção. Saiba o que é a PLASTICIDADE CEREBRAL e como este mecanismo natural do cérebro está presente nas metodologias utilizadas na Terapia, para ajudar as crianças no desenvolvimento da fala e da linguagem. Diariamente, chegam-nos ao consultório crianças e adolescentes que não têm a fala adquirida; outros, falam, mas com distorções em alguns sons, apresentam um vocabulário aquém do esperado para a idade ou um discurso desorganizado. Outros, nunca deram sinal de alteração até à entrada para a escola, altura em que a aprendizagem da leitura se revelou um inexplicável problema para pais e professores. Após a avaliação em Terapia da Fala, inicia-se a intervenção e, regra geral, as crianças começam a evoluir gradualmente, superando os seus obstáculos. É importante salientar a “velha máxima” de que cada caso é um caso e apesar de duas crianças poderem ter o mesmo diagnóstico, como por exemplo Perturbação dos Sons da Fala, cada uma terá evoluções e resultados diferentes. Cada criança tem o seu tempo, a sua família e herança genética, o seu meio escolar, a sua personalidade, a sua arquitetura cerebral . Todos os cérebros terão a mesma base organizacional - como por exemplo uma área concreta altamente especializada na linguagem, no hemisfério esquerdo -, mas há nuances que diferem de pessoa para a pessoa. Se, por um lado, essas diferenças têm uma base genética, por outro vão sendo fomentadas ao longo da vida, desde o período in útero, e que passam pela estimulação que recebemos do meio, do acesso à saúde e outros recursos básicos, de eventuais doenças, da alimentação, da medicação, da intervenção terapêutica (como a que é realizada nas sessões de Terapia da Fala) , entre outros fatores.
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